Wednesday, May 21, 2008

Estou confusa. Encostada à ombreira da porta sinto-me leve como uma brisa. Na verdade acho que não me sinto de todo. Sou ar, sou nada. Estou numa casa, escura, fria. Mas com um cheiro tão familiar. Encostada habituo os olhos à falta de luz. Vejo-me. Não. Revejo-me. Oiço o baralho que vem da janela fechada. Lisboa. Sinto o cheiro a pó e roupa lavada. Benfica. Estou junto ao fogão. Espero a água aquecer no fervedor. São 11 horas. Olho-me nos olhos. Pareço mais velha do que agora. Pijama de Verão azul às riscas. O corpo cansado. Os olhos semi abertos. Despejo a água nas duas pequenas chávenas. Faço café para dois. A casa muda de cheiro enquanto os grãos se fundem. A casa muda de cor quando puxo com a pouca força que ainda tenho o estore da sala. Cinzento. “Está a chover” grito para o ar. Passo a porta, volto à cozinha, pego nas chávenas, “merda, está quente”, levo-as ao quarto. Poso-as no armário. Procuro-te. Não sei onde estás, mas sei que sabia exactamente onde estavas. Deito-me novamente ao teu lado. Os lençóis ainda quentes dos nossos corpos juntos toda a noite. Atiras os teus braços para o meu corpo como se pudéssemos voltar a adormecer. Junto os meus lábios aos teus. “Bom dia!” Silêncio. E nesse silêncio cabe o mundo. Observo-nos ali enlaçados. Imagino a tristeza do mundo fora desta casa ao desconhecer o que ali se passa. E dormimos. Um suspiro, uma volta na cama. Tiro a cabeça despenteada da almofada, “bebe o café senão fica gelado”. Sem açúcar, nenhum deles. Mas não precisei de perguntar isso por muito a dormir que estivesse. Sei-o de cor. Sei o espaço de cor. Sei-te de cor. Estico-me por cima do teu corpo e pego uma das chávenas. Levanto-me e abro o estore do quarto também. Ligo a música. Mudo o espaço. Quero um bom começo. A colcha e o tapete rosa ganham cor. O “campo de mimbre” falseado ganha contornos. “Ainda está morno”. Grunhes qualquer coisa e sem abrir os olhos esticas o braço e procuras com os dedos o teu café da manhã. Sentados na cama olhamos um para o outro. E bebemos. Mais um dia. Observo encostada na ombreira e penso se não terá sido aquele o último. Não escuto o que dizemos. Mas parecemos felizes. Nada me importa. É como se também eu não soubesse o fim. Desconhecesse que é nesse mundo para lá do vidro que nos vamos perder um do outro. Apetece-me abraçar-te, desenhar o teu rosto com a minha mão. Dizer-te que ainda te conheço. Que serei incapaz de te esquecer. No entanto estás ao meu lado e não faço nada disso. Nem tu. Preferimos dormir. Colamos as testas e damos as mãos. E tudo era perfeito. Não sei se acreditas em auras. Eu sim, daqui vejo as nossas. São uma só. És tu que de olhos fechados desces a mão pelo meu corpo. Aqueces-me. Lembras-me que estás ali. Queres amar-me. As tuas mãos não dizem mais que isso. E sei-o bem. Sei-te de cor. E finjo que não sinto, mas sinto e desejo. E não páras porque sabes que finjo. “Estou cansada” digo-te depois de mo perguntares. Mas não páras porque sabes que não minto, mas quero. Beijas-me. Os lábios secos da noite. O sabor a café. Da porta oiço-nos, vejo-nos, sinto-nos, cheiro-nos. Passamos de dois a um. Devagar. O rádio ligado é a única presença de fora cá dentro. O trânsito. Mortes. Mas nem escutamos. Somos nossos. Egoístas. Nada mais nos interessa. Dançamos. Mudamos de ritmo, de posições. A magia continua a ser a mesma da primeira vez. Sorrimos por isso. “E eu a ti” respondo-te de volta. E a música pára. Mas fica tudo em nós. Abraçamo-nos. Sinto-te exausto sobre mim. Deixo-te sair. Deitar. Aninho-me no teu peito. Fecho os olhos. Durmo. Ali, relembro quantas vezes não dançámos aquela dança. Naquele mesmo sitio. Em tantos outros. Nenhum de nós pensava que um dia alguém ousaria quebrá-la. Dançávamos felizes. Tal como tínhamos dormido felizes. Fazes-me falta. Mas deixo-me dormir. Estás ali. Tudo está bem. Desde o primeiro dia em que te vi que soube que tudo estaria bem enquanto estivesses ali. Já lá vão 3 anos. Passa das 14 quando nos levantamos. Arrumamos a casa. A loiça da noite anterior. A manta encarnada do sofá. A cama. Tomamos duche juntos. Não queres lavar a cabeça. Chateio-me contigo. “Espera” repondo ao teu grito de falta de paciência. Estamos atrasados para as tuas aulas. E o caminho ainda é longo. Sinto-nos a correr. Os estores voltam a ser fechados. Escuro e frio. A música desligada. Fugimos do sonho para a realidade. A realidade que nos destroí e esmaga. Mas fugimos do sonho. E não da realidade. Tranco a porta com três voltas. Fico só eu na casa vazia. Saímos e deixámos de ser um. Deixámos de ser nossos. Da janela vejo-nos a caminhar de mãos dadas. Não chega para enfrentar o barulho que nos cerca. Que nos vai esmagar. Sento-me na cama. Fria. Pergunto-me se não foi nesse dia que nos perdemos um do outro. Não creio. Fazes-me falta. Hás-de sempre fazer. Saio daquela casa como entrei. Não me sinto. Sou nada. Quero apagar o espaço. Mas sei-o de cor. Sei-te de cor. Apetece-me abraçar-te, desenhar o teu rosto com a minha mão. Dizer-te que ainda te conheço. Que serei incapaz de te esquecer. Mas agora já não estás aqui. Nunca mais vais estar.

No comments: